Instagram Feed

ubcmusica

No

cias

Notícias

A difícil e valente trajetória feminina no funk ganha livro
Publicado em 03/05/2024

'Funk Delas - A História Contada Pelas Mulheres‘ relembra pioneiras, entrevista ícones do gênero e mostra desafios que ainda enfrentam

Por Isaque Criscuolo, de São Paulo

Deize Tigrona, ícone do funk e história de resistência ao se manter no gênero. Foto: divulgação

O funk brasileiro há muito deixou de ser só um gênero; alcançou o status de movimento cultural. Mas a inclusão real das mulheres como protagonistas da cena ainda é um processo em construção. Por muito tempo, elas estiveram simplesmente silenciadas e deixadas em segundo plano. Agora, é a hora de espalharem sua voz.

Lançar a justa luz sobre elas — e sua vital contribuição para a transformação do funk num dos signos de identidade brasileira no mundo — foi o objetivo de Michele Miranda, jornalista, pesquisadora e curadora musical que escreveu “Funk Delas — A História Contada Pelas Mulheres”. Fruto da dissertação de mestrado de Miranda, que já trabalhou como curadora no Spotify e como jornalista musical no diário O Globo, a obra refaz a trajetória de nomes como Valesca Popozuda, MC Trans, Deize Tigrona, MC Cacau, Tati Quebra Barraco e muitas outras. 

"A ideia surgiu enquanto eu trabalhava no Spotify e tinha dificuldade de encontrar interlocutoras mulheres nos bastidores do funk. Percebia a enorme discrepância entre a quantidade de lançamentos de homens e mulheres. Não sei precisar quando o funk deixou de ser apenas um gênero musical presente na minha vida e passou a ser trabalho, mas sempre senti um incômodo pela falta de vozes femininas nas músicas que eu ouvia desde criança”, diz a autora. “A ideia de adaptar a dissertação em livro veio de uma das funkeiras, a MC Baronesa, que me disse que o sonho dela era ter sua história numa livraria.”

Para a jornalista, o processo de pesquisa e seleção das artistas entrevistadas foi um desafio, pois sua intenção sempre foi criar um documento histórico desses nomes e trajetórias musicais:

"Algumas artistas eu já conhecia, tinha maior proximidade com elas por conta dos anos que trabalho com o funk. A outras expliquei o projeto, e elas toparam imediatamente por reconhecer a importância de registrar essa história que elas escrevem diariamente com o próprio corpo e a própria voz.”

Durante as entrevistas, a autora se emocionou com algumas histórias, especialmente a de Deize Tigrona.

"O que mais me surpreende é perceber que a maioria das artistas que se mantiveram no funk, sem migrar para o pop ou outros gêneros, não enriqueceu e vive com dificuldades. Temos muita sorte da coragem de Deize Tigrona, por exemplo, de se manter no funk. Por conta das dificuldades de viver da música, ela abandonou a carreira de cantora em busca de estabilidade para manter sua família e chegou a ser gari. Um dia, trabalhando numa praia da Zona Sul do Rio de Janeiro, foi reconhecida por fãs e voltou à mídia. Inclusive, acabou de lançar um disco de inéditas, 'Não Tem Rolê Tranquilo'.", descreve Miranda.

Ao mergulhar na história do funk feminino no Brasil, Michele percebeu que, embora as mulheres estivessem presentes desde os primeiros bailes, até hoje ainda temos muitas 'primeiras' a serem descobertas.

"A primeira MC mulher no funk, a MC Cacau, apareceu em 1994 e está completando 30 anos de carreira. Ela estreou sua carreira cinco anos depois de o primeiro álbum de funk, o 'Funk Brasil', de DJ Marlboro ser lançado. E, 30 anos depois, ainda estamos comemorando as primeiras no funk. Por exemplo, a primeira DJ produtora musical de funk é a Iasmin Turbininha, que apareceu por volta de 2017", destaca a jornalista.

Valesca em 2005, nos tempos da Gaiola das Popozudas. Foto: Reprodução/Daniela Dacorso

Valesca Popozuda, que começou fazendo músicas no estilo “resposta” ao discurso machista vigente na cena do funk, é outra pioneira: ícone de uma geração que soube se impor no palco, usando o microfone.

"O MC cantava o que quisesse sobre a gente, tipo ‘ela pega vários, então, é vagabunda’, e nós pegávamos o microfone e respondíamos: ‘pego vários, sim, sou vagabunda, sim, e qual o problema?’. Naquela época, os conceitos de machismo e feminismo não eram muito discutidos e divulgados. Então, fomos feministas antes até de saber o que era isso”, analisa. 

Outra pioneira também tem memórias bem vívidas do início, mas desde um lugar diferente ao de Valesca.

“Fui a primeira trans a ir a uma roda de funk, numa época em que as letras eram muito homofóbicas, que era normal ter ‘viadinho’ nas letras, que as pessoas só tinham a referência da Lacraia e da Mulher Banana, que era uma transfobia recreativa, só chacota com a nossa imagem”, conta Ana Vitória, a MC Trans. “Já cheguei ali na roda brigando, falando que eu não estava para ser chacota de ninguém. Mostrei meu trabalho.” 

MC Trans: caminho aberto na marra. Foto: divulgação

Michele Miranda espera que o livro inspire o público e traga mudanças significativas para o cenário do funk e para a sociedade em geral:

"Não podemos ser ingênuos de pensar que esses problemas de gênero são exclusivos do funk. Eles acontecem no rock, no sertanejo, no pagode, nas empresas multinacionais, na escola, no nosso bairro, enfim, no mundo todo. Mas, no funk, espero conseguir investimento para continuar contando essa história através de um documentário, que haja mais espaço para as mulheres, que elas sejam convidadas em maior número para os festivais, que suas músicas sejam mais programadas em playlists, que as marcas invistam mais em patrocínios a elas, que gravadoras busquem e assinem mais contratos com elas, que haja mais oficinas focadas em capacitação de mulheres… E, principalmente, que haja mais respeito na indústria em relação às mulheres.”

Lançar luz, “desinvisibilizar”, homenagear quem abriu portas às demais: só isso já demonstra um momento melhor para as mulheres.

“Depois de MC Katia e Tati Quebra Barraco lutarem para serem algumas das primeiras mulheres no funk, chegou o momento de nós, trans, brigarmos pelo nosso lugar. É difícil, mas não podemos desistir. É um recado: vai ter travesti em todos os lugares. Ninguém mais proíbe a gente de nada”, desafia MC Trans. “Estamos no Big Brother Brasil, através da Linn da Quebrada; no HERvolution, através da MC Trans; no gabinete, através da Erika Hilton (eleita vereadora em São Paulo, em 2020, e deputada federal, em 2022). Sociedade transfóbica, sinto muito.”

A autora do livro faz coro com ela e elenca uma série de marcos recentes que mostram um momento de conquista de direitos, de mulheres imparáveis — no funk e em todos os lugares — reivindicando seu justo espaço.

"Temos a Alana Leguth, por exemplo, sócia-fundadora da KondZilla, ocupando um importante espaço na indústria como executiva e empresária. Já vemos artistas trans ocupando lugar de artista respeitada, em vez de aparecer numa posição de entretenimento, promovendo uma 'transfobia recreativa', como definiu muitíssimo bem a MC Trans", enumera Miranda. "O fato de Ludmilla ser a primeira mulher afro-latina a pisar no palco principal de um dos maiores festivais do mundo, o Coachella, e Anitta ter conquistado o primeiro lugar global no Spotify com 'Envolver' são vitórias do funk, da favela, da periferia, dos brasileiros e também de todas as mulheres do planeta. Elas estão mostrando para as mulheres que têm uma realidade parecida que o lugar delas é onde quiserem estar.”

 

A jornalista e curadora Michele Miranda, autora do livro. Foto: Amanda Nakao

 

LEIA MAIS: Em 7 anos, associadas mulheres se multiplicam - mas participações delas nos ganhos, não

LEIA MAIS: Na Revista UBC, os bastidores de um songcamp só de mulheres promovido em MG pela UBC


 

 



Voltar